Uma decisão inédita e surpreendente da justiça portuguesa reconheceu a um cidadão brasileiro, bisneto de português, o direito à nacionalidade originária.
Proferida originariamente pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a decisão foi mantida por unanimidade em 16 de janeiro de 2020 pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS).
O derradeiro recurso da entidade pública foi rejeitado pelo Supremo Tribunal Administrativo em decisão unânime publicada no dia 18 de novembro de 2021, que consolidou a tese (Processo n.º 01831/14.0BELSB, sob relatoria de Teresa de Sousa).
É a terceira derrota da Conservatória dos Registo Centrais nos últimos meses em temas sensíveis relacionados à interpretação da Lei da Nacionalidade Portuguesa (clique aqui para conhecer as demais: estabelecimento da filiação e cumprimento de prazos).
Neste novo caso o Ministério da Justiça também esteve envolvido, e uma complexa interpretação das mudanças nas regras de atribuição da nacionalidade para netos (e a convolação para os netos naturalizados) foi apresentada, resultando numa impressionante aula sobre interpretação do direito.
Conheça abaixo em detalhes o novo entendimento dos tribunais portugueses sobre o tema.
O Dias Rodrigues Advogados [Julian Dias Rodrigues, Direito Internacional Privado] tem vasta experiência em procedimentos administrativos de nacionalidade portuguesa e impugnação judicial de decisões das Conservatórias.
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O CASO
Tudo começou com um pedido de naturalização dirigido ao Ministério da Justiça e apresentado por um cidadão brasileiro à Conservatória dos Registos Centrais, tendo como base o art. 6.º, n.º 6, da Lei da Nacionalidade (naturalização discricionária e excepcional, a critério da Ministra da Justiça).
Perante as várias hipóteses discricionárias previstas no dispositivo, o requerente defendeu que o seu caso se enquadrava no dos descendentes de portugueses.
Afirmou ainda ter fortes ligações com Portugal: é dono de uma quinta em Guimarães, onde se reúne com familiares portugueses, e é licenciado em Medicina numa Universidade com protocolo na Ordem dos Médicos de Portugal.
O requerente provou que seu bisavô era português originário, e que seu pai havia se naturalizado português na condição de neto em 2010, com base na então vigente regra da naturalização para netos (antiga redação do art. 6.º, n.º 4, da Lei da Nacionalidade, alterada em 2015 e regulamentada em 2017).
O pedido foi indeferido com base na discricionariedade da administração pública.
Os argumentos para o indeferimento se basearam no suposto fato de que o requerente não tinha grandes ligações com Portugal, e que o bisneto corresponde a uma geração muito distante do ancestral português.
Segundo o Estado Português, “o parentesco do Recorrido com um português originário só existirá ao nível do seu bisavô, ascendente no 3.º grau da linha reta, o que configura um hiato geracional muito considerável e que tem vindo a ser considerado insuscetível de constituir fundamento demonstrativo de uma proximidade a Portugal ou à respetiva comunidade”.
No entanto a posição do Ministério da Justiça e da Conservatória (IRN) deixou de levar em consideração um aspecto peculiar do caso: a regra que permitiu que o pai do requerente pedisse a naturalização portuguesa foi revogada, dando lugar a uma hipótese de atribuição (nacionalidade originária).
Eis a questão.
A TESE: CONVOLAÇÃO DOS “NETOS NATURALIZADOS” PARA “NETOS ORIGINÁRIOS” POR EFEITO DA LEI
A justiça portuguesa deu uma breve aula sobre a aplicação da lei no tempo e sua retroatividade, concluindo que a Conservatória cometeu um sério erro de interpretação.
Isto porque em 2015 a Lei Orgânica n.º 9/2015 revogou o regime da naturalização para netos (art. 6.º, n.º 4), dando lugar à atribuição para estes mesmos netos (art. 1.º, n.º 1, al. d).
Para o Tribunal, a situação do pai do requerente passou a ser considerada como um dos fundamentos da atribuição da nacionalidade de origem.
Afinal, o art. 2.º da Lei Orgânica n.º 9/2015 declarou expressamente que as alterações se aplicavam também aos netos nascidos no estrangeiro em data anterior à sua entrada em vigor.
Tendo isso em consideração, a justiça portuguesa chegou à conclusão de que a Conservatória errou gravemente ao considerar que o requerente, bisneto de português, estava no 3.º grau da linha reta, com um “hiato geracional”, pois com as alterações de 2015 o seu pai passou a se amoldar à hipótese de atribuição na condição de neto (nacionalidade originária).
Como resultado, independentemente de o pai do requerente ter ou não ter solicitado a “convolação” da nacionalidade derivada para a nacionalidade originária, sua situação jurídica era a de um português de origem.
Logo, o requerente não era mais um bisneto de português de origem, mas sim, filho de português originário.
E como os filhos de portugueses de origem são também portugueses de origem nos termos do art. 1.º, n.º 1, al. c), da Lei da Nacionalidade, caiu por terra toda a discussão acerca da naturalização discricionária pelo art. 6.º, n.º 6.
Para o Tribunal, toda a discussão sobre ligações com Portugal ou hiato geracional na naturalização discricionária estava superada, pois o requerente era filho de português de origem, não havendo saída ao Estado Português senão considerá-lo, também, um português de origem.
CONCLUSÃO
Da tese jurídica fixada pela justiça portuguesa – da primeira à terceira instância – resulta que:
Os netos naturalizados na vigência da antiga redação do art. 6.º n.º 4 não precisam “convolar” a nacionalidade derivada para nacionalidade por atribuição para serem considerados portugueses originários.
Nestes casos, a nova condição de português de origem se operou retroativamente com a lei de 2015, por força da própria lei. A data do nascimento – se anterior ou posterior à lei – é irrelevante.
Como consequência, um filho de netos naturalizados não é bisnetos de português de origem, mas filho de português de origem, tendo direito à nacionalidade portuguesa por atribuição com base nesta condição (alínea c) do n.º 1 do art. 1.º da Lei).
Embora a decisão diga respeito a caso envolvendo bisneto, a mesma interpretação beneficiará todos que precisam provar a condição de descendentes de portugueses originários, quando estes descendentes forem netos naturalizados.
CONSERVATÓRIA NO BANCO DOS RÉUS: NOVOS TEMPOS NA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI DA NACIONALIDADE
Como ponto alto da decisão podemos destacar que mais uma vez a interpretação restritiva do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) sucumbiu a uma análise sistemática e mais aprofundada elaborada por advogados e aceita por magistrados.
O acórdão do TCAS fez questão de assinalar en passant que o IRN insistiu numa interpretação equivocada e já rejeitada pela justiça, qual seja, a de que para os fins do art. 6.º, n.º 6, o ascendente deve ser português de origem.
Trazendo à memória a decisão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de fevereiro de 2019 no Processo n.º 219/10.6BEPRT, a Corte afirmou que se a lei não traz esse requisito, não é a Conservatória que deve criar exigências, sob pena de violação de competências do legislativo.
Com a terceira derrota recente do IRN em temas sensíveis no campo da cidadania portuguesa, novos temas relacionados à Lei da Nacionalidade começam a ser apresentados aos Tribunais, num movimento que sepulta a sensação de hegemonia do IRN na sua interpretação e aplicação.
Da primeira à última instância, passando pelos escritórios dos advogados, uma nova e incontornável revolução interpretativa em matéria de nacionalidade portuguesa parece estar, enfim, em curso.
O Dias Rodrigues Advogados [Julian Dias Rodrigues, Direito Internacional Privado] tem vasta experiência em procedimentos administrativos de nacionalidade portuguesa e impugnação judicial de decisões das Conservatórias.
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